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EDITORA 34 - 95
Sentimento

Na estrada há muitos anos, um artistas brasileiro

O Globo - Segundo Caderno - EDITORA 34 - RIO DE JANEIRO - RJ

19/06/2024

SILVIA BUARQUE
Especial para O GLOBO
ááljarry Belafonte" era u "amigo de Cuba". Mas este depoimento não é sobre Cuba nem sobre política. Falo de nomes, nomes inventados, cidades inventadas, das brincadeiras com tudo isso. Harry Belafonte, para mim, era um nome tão bom que só poderia ser inventado pela cabeça do meu pai. Mas Belafonte existia, assim como as princesas com nomes falsos.
Quando eu tinha 10 anos, era apaixonada por "Força estranha", do Caetano, na voz da Cal Costa. Quando tive que fazer uma prova de geografia muito decoreba, sobre municípios do Estado do Rio de Janeiro, meu pai me salvou ao fazer uma nova letra para aquela canção.
Só me lembro do começo. O original é: "Eu vi o menino correndo/ eu vi o tempo/ brincando ao redor do caminho daquele menino..." E vinha ele: "Existem cinco distritos/ em Cantagalo/ é o que tem mais gente e o resto eu já falo..."
O mais triste é que não guardei um manuscrito, porque era uma música in-teirinha. Mas isso ilustra o lado lúdico do meu pai, presente em todos os lugares, para criar filhas também.
Porque as coisas eram muito no mundo paralelo, no mundo dele.
Tinha um jeito de contar histórias para criança...
Por exemplo, quando contava da ditadura militar, dos opressores, dizia: "Os man-dalhões." Falava: "Os man-dalhões não me deixam cantar a música tal no show." A gente não sabia de tortura, de morte, mas sabia que tinha opressão, censura e "mandalhões".
Tudo do meu pai é gozado porque é meio inventado. Somos parecidos. Não nisso. Eu gosto mais do mundo real, ele gosta das suposições. Ambos temos insónia, angústias, temos medo da morte, conversamos muito. Meu melhor amigo.
Vai, desse jeito desajeito que também é um pouco herança, minha declaração de amor. Mas o mais lindo foi ele cantarolar por dias, há anos, "Ev'ry time we say goodbye" (de Cole Porter). Perguntei o porquê da insistência. Ele respondeu algo como: "Porque, talvez, essa seja a música mais linda do mundo."
Ele diz que fazer 80 anos não é mais que sua obrigação. Um beijo, meu pai.
Depoimento a Maria Fortuna
POETA CONSCIENTE E MÚSICO INTUITIVO
LUIZ FERNANDO VIANNA
Especial para O GLOBO
Lançado no calor dos 80 anos do artista, "Chico Buarque em 80 canções" dá um passo à frente na história das interpretações da obra do compositor. Muitas músicas dele já foram, é claro, tema de artigos e ensaios. Mas reunir 80 análises num só volume ilumina amplamente as ferramentas criativas do Chico cancio-nista, de "Pedro pedreiro" (1965) a "Que tal um samba?" (2022).
O autor, André Simões, de 39 anos, é jornalista, escritor e músico -não profissional, mas profundo conhecedor do assunto. Esse conhecimento musical, fartamente utilizado no livro, não é acompanhado por um leigo. Porém, os comentários sobre melodias e harmonias ajudam a compreender as letras, também abordadas em detalhes.
-Chico é um grande can-cionista, que compõe melo-
dias eficazes e sofisticadas para suas canções. Todo o meu livro defende a tese de que é altamente limitador julgar uma canção isolando letra ou música. A integração dos dois elementos é o básico para a análise - afirma Simões. -A questão é que, enquanto o letrista Chico é muito consciente das ferramentas técnicas na elaboração de versos, o músico é mais intuitivo. E nas canções feitas em parceria, ele quase sempre foi o responsável pelas letras. E aí o letrista se sobressai. Mas como dizer que o autor de uma canção como "A ostra e o vento" não é um melodista de mão cheia?
Simões publicou no ano passado "Francis Hime: ensaio e entrevista", retratan-do um dos principais parcei-ros de Chico. Sua tese de doutorado é "O eu feminino na canção brasileira: desenvolvimento cultural entre 1901 e 1985".
- A pesquisa me levou a ver esse aspecto do eu feminino na obra do Chico de maneira mais pragmática e menos mística. Chico "entende a alma feminina", como se diz, porque é um estupendo compositor. Entende a alma brasileira quando fala do Brasil, a alma do malandro quando fala de malandro, a alma do futebol quando fala do fu-
tebol e entenderia a alma da batata frita se escrevesse uma canção sobre batata frita- diz o autor, ressaltando que 85% das canções de Chico na voz feminina foram compostas para personagens de teatro ou cinema.
O compositor é, para Simões, um renovador nesse campo, especialmente por não separar romantismo de desejo sexual.
- Com ele, as mulheres cheias de tesão poderiam ser prostitutas ou as boas esposas e filhas dos ouvintes de família tradicional e ordeira. As mulheres da obra dele querem amor, companheirismo, atenção e também serem satisfeitas na cama, e cobram o
homem quanto a isso - afirma.
Essas personagens são diferentes da de "Com açúcar, com afeto", música que Na-ra Leão pediu, em 1966, que tratasse de uma mulher submissa. O samba virou polémica em 2022 após o autor - que não o cantava desde 1975 -dizer que não interpretaria mais uma letra que via como machista.
- Quem quer que diga que Chico foi machista ao compor "Com açúcar, com afeto" está sendo, para usar um termo brando, infantil. Os personagens de uma obra não podem ser confundidos com a pessoa física do compositor. Apresentar um personagem machista no contexto de identificação com uma mulher sofredora, aliás, é uma forma de denunciar o machismo -defende Simões. -Depois ele disse que foi mal interpretado, que não estava se curvando a patrulhas identitá-rias. Tomara, começar a se
autocensurar aos 80 anos seria descabido.
Outro elemento que o jornalista mostra ser muito presente na criação de Chico são as ambiguidades. É comum umaletra ter mais de uma camada. Recomenda-se não se restringir à mais aparente.
- Há versos isolados que são deliciosamente ambíguos, como "dei pra maldizer o nosso lar" (de "Atrás da porta"), podendo tanto indicar algo como "fiz sexo com outro homem pra maldizer o nosso lar" quanto "adquiri o costume de maldizer o nosso lar" -exemplifica. -Também há canções inteiramente ambíguas, como o "Samba do grande amor", em que o recorrente verso "mentira" pode apontar a frustração com o relacionamento em que o eu da canção estava, mas também o fato de que esse eu não está sendo sincero.
O livro ainda tem toda a discografia do artista, faixa por faixa.

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370851

CM/Coluna

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