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Romancista publica 'Guerra 1', livro inicial de uma trilogia sobre o conflito que começou há 160 anos
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7.dez.2024 às 23h00
Naief Haddad
Repórter especial da Folha
[RESUMO] Autora de livros premiados, como "Anatomia do Paraíso", Beatriz Bracher lança a primeira parte de uma trilogia sobre a Guerra do Paraguai, seu projeto literário mais arrojado. Como uma colagem, a obra reúne trechos escritos no período do conflito e expõe reflexões sobre a sociedade brasileira do século 19.
À frente do 1º Corpo de Voluntários da Pátria do Pará, o tenente-coronel Joaquim Cavalcanti d'Albuquerque Bello participou de algumas das principais batalhas da Guerra do Paraguai . Também se notabilizou como comandante do primeiro batalhão a ocupar Assunção, em janeiro de 1869.
Àquela altura, os combates estavam em sua fase final. O conflito que opôs a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) ao Paraguai se estendeu por pouco mais de cinco anos, de 1864 a 1870.
A escritora Beatriz Bracher, que lança o primeiro livro de uma trilogia sobre a Guerra do Paraguai
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Eduardo Knapp/Folhapress
Em janeiro de 1866, três anos antes de botar os pés na capital paraguaia, Albuquerque Bello estava no acampamento de Lagoa Brava, em Corrientes, no norte da Argentina, como anotou em seu diário. Nesses textos, o oficial escrevia muitas vezes como se estivesse conversando com Chiquinha, sua mulher que havia ficado no Brasil.
Naquele momento, ele registrou: "Pela manhã quando o camarada foi mudar a cama para debaixo de um caramanchão que tem junto a barraca encontrou uma cobra jararaca, ainda que pequena, havia dormido comigo! estava muito bem enrolada debaixo do travesseiro; vê minha cara Chiquinha, que bela companheira tive esta noite?".
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Com a grafia atualizada e a pontuação mantida como no original, esse fragmento é um dos muitos que compõem "Guerra 1", livro que abre uma trilogia em torno do maior conflito armado ocorrido na América do Sul. A obra é assinada por Beatriz Bracher, romancista e editora paulistana de 63 anos.
Há 160 anos, em 13 de dezembro de 1864, o presidente paraguaio Solano López declarou guerra ao Brasil, ação vista como marco inicial de uma série de combates. O recém-lançado "Guerra 1" vai dessa época a março de 1866, quando as tropas aliadas já tinham reagido à ofensiva dos homens de López e se preparavam para invadir o Paraguai. O segundo volume deve sair no final do ano que vem, e o terceiro, no início de 2026.
Guerra do Paraguai em fotos, pinturas e charges
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Em seu projeto mais ousado em mais de duas décadas de carreira como romancista, a autora dos livros "Antonio", de 2007, e "Anatomia do Paraíso", vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2016 , entre outros títulos, recorreu a diários, cartas, trechos de obras de história, memórias, artigos de jornal e relatórios daquele período do século 19.
Mas não incluiu esses trechos em uma trama criada por ela; em outras palavras, esses excertos não estão ali a serviço do que quer que seja. Como escreve Nuno Ramos na orelha de "Guerra 1", a documentação recolhida por Bracher não é "mais matéria de apoio, mas figura principal e única".
Em meio a 112 autores, 33 se destacam por uma presença mais recorrente e são considerados coautores do livro por Bracher. Há figuras célebres, como Duque de Caxias e Conde d'Eu , e nomes menos conhecidos, como o cadete Dionísio Cerqueira e o próprio Albuquerque Bello.
Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, comandante da Tríplice Aliança na Guerra do Paraguai a partir de 1867
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Divulgação
As notas introdutórias cumprem uma função dupla, são prefácio e uma espécie de manual das regras do jogo. "São livros [referindo-se à trilogia] escritos com pedaços de textos, em sua grande maioria, de combatentes brasileiros da Guerra do Paraguai", escreve. Mais adiante, Bracher diz: "São minhas as palavras das dedicatórias, dos agradecimentos, destas notas, dos títulos e resumos dos capítulos e subcapítulos. Nenhuma outra palavra é minha".
Entre as pessoas a quem esse livro-colagem é dedicado, está o pai da autora, Fernão Bracher, banqueiro que morreu em 2019. Há cerca de uma década, por sugestão do pai, ela leu "Memórias", em que Visconde de Taunay revive passagens da guerra, para onde foi com apenas 22 anos. "Durante a leitura, fiquei com sentimentos esquisitos. Primeiro maravilhamento, depois raiva", conta à reportagem.
Desde então, Bracher passou a se interessar não exatamente pelo conflito, que deixou pelo menos 50 mil brasileiros mortos. A sucessão de batalhas intercaladas por meses de espera não lhe atraía especialmente. Estava, na verdade, fascinada pelas particularidades dos textos que abordavam a guerra e algo mais. Como uma vida corria, um microcosmo, dentro da imensidão de um embate que transformou a América do Sul?
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São ainda relatos que revelam o século 19. "Nos textos que li, além do conteúdo que eles nos contam -choveu, não choveu, o número de cavalos que chegaram em tal navio, cadáveres da batalha de dias antes que vêm agora, rio abaixo, boiando- há um conteúdo que eles carregam na forma de contar o ocorrido", afirma.
"Esse segundo conteúdo tem a ver com a escolha das palavras, muitas vezes que não usamos mais, a pontuação para nós estranha, toda uma gramática um pouco instável em relação às nossas regras atuais. Além desses marcadores formais, há a maneira de tratar alguns assuntos como a honra, a importância da bandeira, a relação com a mulher e mesmo com a morte, uma subjetividade que não se mostra da forma como a percebemos hoje."
Bracher complementa: "Esse segundo conteúdo, que está além da narrativa do ocorrido, é o que, na minha visão, contém todo o século 19. São os aspectos formais e a maneira como determinados assuntos aparecem que nos contam uma enormidade de coisas sobre essas pessoas. E é principalmente essa enormidade de coisas, que estão além do que ocorreu, o que torna essa história, para mim, apaixonante".
Há cerca de oito anos, ela começou a recolher esses fragmentos. Aos poucos, recortes de cópias de livros e documentos, emendados por durex, passaram a ocupar as paredes e as mesas do seu escritório no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Em grande medida, a fluência do texto nasceu da meticulosidade da artesã.
Beatriz Bracher e a criação de sua trilogia sobre a Guerra do Paraguai
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Bracher planejava inicialmente dividir o livro por temas, como mulheres, crianças e doenças -de acordo com o historiador Francisco Doratioto, autor de "Maldita Guerra" , uma das publicações fundamentais sobre o conflito, "a maior parte das mortes na guerra foi causada por doenças e exaustão física, não por combates".
Mais tarde, ela pensou em organizar a obra por lugares, ideia logo abandonada. Decidiu, então, criar uma história e inserir os fragmentos selecionados ao longo dela.
Nenhuma forma lhe pareceu satisfatória. Além disso, estava farta desse assunto, mas não conseguia se afastar dele. Foi salva pelo compositor Arrigo Barnabé , que convidou Bracher, na virada de 2019 para 2020, a refazer a estrutura dramatúrgica da ópera "Gigante Negão", que havia sido lançada no final da década de 1990. Pôde, enfim, avançar em um trabalho criativo.
O compositor Arrigo Barnabé, conhecido por criações como 'Clara Crocodilo', em retrato de março deste ano
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Adriano Vizoni/Folhapress
Em março de 2020, veio o clique. "Estava na minha cara. Seria cronológico e só com esses fragmentos, nada meu." Mas a forma inusual, ela explica, não resultou de uma busca por inovação. Foi a leitura de pelo menos 40 livros sobre a guerra, além de cartas e documentos, que a conduziram para essa organização. "A forma foi uma necessidade, não tinha outro jeito."
O primeiro estranhamento se dá na capa de "Guerra 1", que tem mais de 500 páginas. Abaixo do título e do subtítulo, "Ofensiva Paraguaia e Reação Aliada: Novembro de 1864 a Março de 1866", aparece a palavra "romance". Se a colagem é composta de trechos verídicos, a princípio, por que se referir à publicação como um romance?
"Se não for um romance, o que ele é?", ela devolve a pergunta. "É uma narrativa organizada não para te contar como foi uma batalha, mas para te emocionar, para te prender, para te levar a questionar coisas. Esse é um primeiro ponto ligado à ficção."
Para ajudar o leitor a se situar em meio aos fragmentos, Bracher apresenta brevíssimos resumos do que está acontecendo no teatro de operações logo depois dos títulos dos capítulos e subcapítulos.
Beatriz Bracher ao receber em 2016 o prêmio São Paulo de Literatura pelo romance "Anatomia do Paraíso"
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Bruno Poletti/Folhapress
Outro aspecto da trilogia a distancia da não ficção. "O historiador precisa se afastar do seu objeto de estudo para daí contar a história. No meu livro, é o contrário, acontece um mergulho."
Esse mergulho pode se dar em episódios insólitos, quase cômicos, como o do jararaca, e em situações terríveis a ponto de o autor limitar seu próprio relato, como em um dos trechos sobre a tomada de Corumbá pelas forças paraguaias em 1865.
"As infelizes mulheres que não puderam embarcar e não puderam resistir à fome nos matos para onde haviam fugido, e voltaram para a vila, sofreram horrores que a pena se recusa a escrever e a moral manda calar", anotou o tenente-coronel Jorge Maia.
Há quem, como o engenheiro André Rebouças , mais tarde nome-chave do movimento abolicionista, critique a balbúrdia dos preparativos. "A esta guerra, começada sem plano, e feita na maior desordem, só a Divina Providência lhe pode dar bom fim." E existem outros, como o almirante Barroso, que demonstram fadiga: "Eu não durmo mais que três horas e não me dispo há quarenta dias, sempre de botas e armado".
O engenheiro e abolicionista baiano André Rebouças (1838-1898)
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Museu Histórico Nacional
Baiano como Rebouças, o cirurgião Joaquim Caminhoá descreve, entre outras ocorrências, o efeito dos sapatos úmidos resfriados pelo vento durante horas a fio sobre os dedos dos pés dos soldados. "Tratava-se da mortificação das extremidades dos membros inferiores, que enegreceram-se e tornaram-se completamente insensíveis."
Com frequência, os médicos enfrentavam problemas que não sabiam como tratar. Segundo Bracher, eles "relatavam o experimento para que, mais adiante, outros médicos o conhecessem. Como se dissessem 'isso já tentei e não deu certo; aquilo deu certo', levando à precisão científica. Acho isso de uma generosidade, sabe?".
Nem tudo é tragédia.
Guerra - I: Ofensiva Paraguaia e Reação Aliada - Novembro de 1864 a Março de 1866
Preço R$ 119 (536 págs.) Autoria Beatriz Bracher Editora Editora 34
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